Responsabilidade histórica do STF Raposa Serra do sol

16 Set 08

 

Aldo Rebelo

No conflito que se desenrola na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, duas mulheres simbolizaram a complexidade da situação. Em 27 de agosto, no primeiro dia do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) de ações que contestam a homologação de uma área contínua de 1,7 milhão de hectares para usufruto exclusivo das tribos, a índia uapixana Joênia Batista de Carvalho defendeu com ardor a expulsão dos não-índios que lá vivem e trabalham. "Estão em jogo os 500 anos de colonização", afirmou, na condição de primeiro indígena a advogar na Suprema Corte, num testemunho eloqüente de mobilidade social e integração à sociedade nacional. Joênia é casada com um "mestiço" e vive na cidade de Boa Vista.

O outro símbolo foi a índia macuxi Elielva dos Santos, entrevistada na Vila do Surumu pela TV Bandeirantes. Elielva acompanhava o julgamento do Supremo ao lado de outras mulheres igualmente apreensivas, estampando no rosto e nos gestos nervosos o medo de terem sua "família desfeita". Como fazem as índias desde que Bartira se casou com João Ramalho, no século 16, Elielva desposou um camponês egresso de Tocantins e, naturalmente, teme que ele seja removido da Raposa Serra do Sol, como muitos já o foram. O termo oficial é extrusão, um galicismo eufêmico para a velha e clara palavra portuguesa expulsão, ou saída forçada. Dias antes, Elielva explicara à Agência Brasil por que é contra a demarcação contínua e a extrusão de seu marido: "Se a gente está nessa luta, não é pelos produtores de arroz, é por nossa família."

O confronto de Joênia e Elielva escancara a natureza fratricida do litígio de Roraima. Não nos cansamos de repetir que ali ocorre um "conflito no seio do povo", daí ser necessário superar o jacobinismo das partes e buscar uma solução de consenso que atenda aos interesses de todos os envolvidos. Este é o desafio levado ao Supremo. Se o tribunal tem na pauta uma causa histórica, pela História deve ser iluminado. Depois do erro do Executivo na homologação da reserva, está nas mãos do Judiciário o condão de evitar que a Raposa Serra do Sol simbolize uma negação da formação social do Brasil e do caldeirão étnico em que foi forjado o povo brasileiro. A essência do conflito de Roraima não oscila entre o mito do bom selvagem e "seis arrozeiros", os quais, diga-se, não se limitam a meia dúzia de empreendedores, mas representam a expansão da sociedade nacional e a vivificação da faixa de fronteira, e têm o apoio de uma parte dos índios e de não-índios pés-rapados - e também do Exército Brasileiro.

No Supremo, o partido da demarcação contínua-extrusão foi abraçado pelo relator Carlos Ayres Britto, o único a votar antes que o julgamento fosse interrompido por um pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Direito. O voto do ministro Carlos Britto sinaliza que todo o nosso processo civilizatório não passou de um grande equívoco. A decidir o Supremo pela demarcação contínua-extrusão, e tivesse a decisão o poder de voltar no tempo, estaríamos condenados a ser uma civilização de caranguejos, voltada para o litoral e de costas para o Brasil profundo das terras interiores, como advertira frei Vicente do Salvador no século 17. Casamentos que deram origem às primeiras famílias genuinamente brasileiras, como a dos portugueses João Ramalho, Diogo Álvares e Jerônimo de Albuquerque com as índias Bartira, Paraguaçu e Maria Arcoverde, figurariam na categoria de anomalia antropológica. Aliás, vale lembrar que o primeiro cardeal de nossa Igreja, o brasileiríssimo cardeal Arcoverde, descendia de uma remota avó índia, tão índia como as que hoje resistem em Roraima.

 Por influência de ONGs, já há tuxauas em Roraima com rompantes de eugenia, defendendo a proibição de casamentos interétnicos. A filosofia de Rondon, baseada em Bonifácio, exaltada por Gilberto Freyre e seguida por Darcy Ribeiro, era "favorecer por todos os meios os matrimônios entre índios e brancos e mulatos". A justa e necessária proteção do índio não precisa ter como efeito mecânico o desamparo dos não-índios. A maioria destes é de caboclos e mulatos arribados em Roraima no fluxo clássico de ocupação do território - levando no corpo sangue de índios, negros e brancos, como mostram as pesquisas do cientista mineiro Sérgio Danilo Pena.

Para uma solução de bom senso o primeiro ponto a considerar é o de que, em nenhuma hipótese, por nenhum motivo, se negue terra aos índios. Que ecoe longe a voz da advogada uapixana Joênia. Até as pedras sabem, no entanto, que as cinco tribos da Raposa Serra do Sol não ocupam uma faixa contínua de 1,7 milhão de hectares. Ademais, não formam os indígenas, nem deles tanto se cobra, uma sentinela geopolítica da extensa zona de fronteira em que se espalha a reserva. Ao contrário, como no disparate da pureza étnica, há quem lhes incuta idéias distintivas de nação, povo, soberania, autodeterminação. Foi seduzindo tribos e fincando sua bandeira que, no século passado, o Império Britânico abocanhou 19 mil quilômetros quadrados do território do atual Estado de Roraima.

Além do retrovisor da História, o julgamento atrai fatores estratégicos projetados para o futuro. O aparelho de Estado, de que o Supremo faz parte, não pode elidir seu papel de "organismo geográfico". O clássico vazio populacional, a fronteira politicamente inerte condensam uma vulnerabilidade territorial perigosa na Raposa Serra do Sol. As tensões do mundo mostram que as circunstâncias mudaram para ficar semelhantes. A idéia de que o mapa-múndi está pronto e acabado é tão duvidosa hoje quanto na época do Tratado de Tordesilhas. Disso são indicadores episódios contemporâneos de secessão, como os de Kosovo e da Ossétia. Fomentados por interesses ultranacionais, demonstram que a velha partilha do globo, articulada à disputa por áreas de influência, segue seu curso com outros nomes e o mesmo rumo.

Aldo Rebelo é deputado federal (PCdoB-SP)