CELSO DANIEL ( Frei Betto ) 

                                                                                                                CELSO DANIEL

Ao saber de teu assassinato, amigo, eu fiquei com muita
raiva. Raiva do mundo, do meu país, do estado, da
incompetência da polícia sustentada por nossos impostos, da
impunidade. Talvez este não seja um sentimento cristão, ou
quem sabe foi o que Jesus sentiu ao derrubar as bancas dos
mercadores do Templo. 

Celso, eu posso entender agora o desespero de Jesus
sentindo-se, no Horto das Oliveiras, abandonado por Deus.
Por que tanto silêncio deste Pai de Amor que nos exige como
preceito a fome e a sede de justiça? Eu tenho medo do
assassino que se esconde no fundo do meu coração, medo
de que ele acorde sequioso de vingança, bradando por pena
de morte e julgamentos sumários. Tenho medo da corrupção
que medra em setores da polícia e de que o canto do poeta
acabe por me convencer a chamar o ladrão. 

Não sei quem puxou o gatilho que perfurou com tantos tiros o
teu rosto sereno. Mas sei que as mãos que te arrancaram do
carro e levaram para a morte eram, como no teatro de
bonecos, monitoradas por gente muito poderosa, os mesmos
que assassinaram Toninho, prefeito de Campinas, em
setembro de 2001. E a lógica era a mesma que acionou a
arma que, no dia seguinte ao teu seqüestro, tentou matar
José Rainha, líder dos Sem Terra. 

Quando falo em poder bandido não me refiro apenas aos
pistoleiros de aluguel que, hoje, riem com escárnio quando
caem atrás das grades, pois sabem que, em breve, voarão
como pássaros rumo à liberdade. Falo daqueles que não
suportam a hipótese de o PT chegar ao poder neste país.
Falo do terrorismo fundamentalista e também do terrorismo
transnacional que globaliza a violência sob a égide da águia
imperial. Enquanto os pobres morrem de fome, seus
defensores devem ser eliminados com as armas do horror, de
modo a semear o pânico, a insegurança, o medo de viver. 

Agora, companheiro, divides o pão da eternidade com todos
aqueles que se destacam na galeria dos mártires da justiça:
Jesus, Tiradentes, Gandhi, Guevara, Luther King, etc. Tanto
anônimos que tiveram suas vidas ceifadas por almejarem um
pouco de pão, um pedaço de terra, um teto, um trabalho.
Seus sonhos desafiaram o nosso egoísmo, o nosso apego
mesquinho aos bens materiais, a nossa ambição de poder, a
nossa prostituição moral diante do dinheiro. 

Conheci poucas pessoas tão ponderadas e competentes
como tu. Teu povo de Santo André elegeu-te três vezes, da
última com mais de 70% dos votos, num reconhecimento
clamoroso de que abraçaste o conselho evangélico de
exercer o poder como serviço ao bem comum. O que teus
assassinos não podiam imaginar é que a força ressurrecional
de teu sangue transformaria a emoção dos brasileiros em
indignação. Todos choram por ti, Celso. Choramos de
vergonha do nosso atraso, da cultura de exaltação da
barbárie que respiramos, da nossa incapacidade de reduzir a
circulação de armas, de nossa inépcia frente a tanta
impunidade. 

Nosso lamento não se ergue apenas por tua morte. Ela não é
um caso isolado. Ergue-se sobretudo pela evidência de que o
Brasil se encontra numa guerra civil não declarada. Aqui, são
assassinadas, a cada ano, mais de 40.000 pessoas! Isso
supera os índices das guerras mais recentes, do Oriente
Médio e de países como a Colômbia. A impunidade incute
nos criminosos a convicção da imunidade. 

Não são os prefeitos do PT que necessitam, urgente, de
aparatos de segurança. É o povo brasileiro, é esta nação que
abriga 53 milhões de excluídos, dos quais 15 milhões são
sem-terra e 20,6 milhões carecem de teto, sem falar no
desemprego. Hoje, segurança não se restringe a caso de
polícia. É, sobretudo, caso de política; políticas públicas que
atendam 33 milhões de brasileiros que estão entre 15 e 24
anos de idade, a maioria condenada a migalhas de instrução,
trabalhos informais mal remunerados, periferias sem
equipamentos de lazer, esporte e cultura, vidas sem ideais,
consumidas pelas drogas. 

Ao tentar proteger-te dos tiros, tu elevaste as mãos à altura do
rosto e, assim, o teu corpo foi encontrado. O gesto simboliza
um basta a tanta insanidade, a vontade de não ver o crime
arvorado em poder paralelo, o espanto frente à covardia de
quem esmaga flores mas, como dizia Henfil, jamais poderá
evitar a primavera. 

Agora, Celso, saibas de nosso compromisso ao receber a
tua herança, o exemplo de tua dignidade, de tua abertura ao
diálogo, de tua consciência cívica, de tua humildade no
exercício do poder, de tua firmeza de princípios. Deus nos
ajude a merecer os valores que forjaram a tua vida, de modo
a prosseguirmos em teu caminho, mudando o perfil político e
social deste país. Até que o nosso pranto se converta em
alegria numa terra livre da violência e da desigualdade social.


Consola-me saber que, quando a gente nasce, todos riem e a
gente chora. Quando a gente morre, todos choram e a gente
ri, inebriado pelo Amor que nutre o nosso existir, eternamente.


Frei Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue" (Casa
Amarela), entre outros livros. 

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