Aqui temos na pratica a ação dos magnatas transnacionais sufocando o povo da América Latina |
Tornando-se
um Estado Livre Associado?
"De nenhuma maneira posso permitir que caia meu amigo Jorge" (Batlle),
disse George W. Bush no momento de autorizar um empréstimo do Departamento de
Tesouro norte-americano por 800 milhões de dólares. O presidente dos Estados
Unidos certamente detém informação privilegiada, mas nada fazia suspeitar
que, no dia 30 de julho, Jorge Batlle estivesse arriscado de perder a sua
cadeira presidencial. Bush deveria explicar o alcance de suas alusões. E se
Jorge Batlle, o "amigo Jorge", tem um mínimo de dignidade, também
deveria esclarecer se efetivamente esteve a ponto de cair. E mais: deveria
informar quais foram as condições que lhe impôs seu "amigo George"
para outorgar esse empréstimo ao Uruguai, porque com certeza, em letra bem
pequenina, o contrato explica o rápido surto de "solidariedade" que
sofreu Bush.
O presidente Batlle deveria explicar que coisas prometeram os enviados de seu
governo, Ariel Davrieux e Isaac Alfie, nos cinco dias que passaram em
Washington, enquanto o dinheiro, em Montevidéu, escorria dos bancos e as
reservas do Banco Central esgotavam-se (até que foi decretado o feriado bancário.)
Alfie era uma das testemunhas mais qualificadas da crítica situação e sua
qualidade de assessor direto do ex-ministro da Economia não o inibiu de retirar
uma grande parte do dinheiro próprio que havia colocado em uma instituição
privada.
O secretário do Tesouro dos Estados Unidos não teve pudor em criticar
"essas políticas que permitem que o dinheiro que outorgam os organismos
multilaterais escapem dos bancos", mas o presidente Batlle, diferentemente
de seus colegas argentino e brasileiro, preferiu ignorar a alusão (que se
ajustava perfeitamente à situação uruguaia), evitando o desconforto de ter
que pedir retificações e exigir desculpas, como fez Fernando Henrique Cardoso.
Contudo, essa política que critica o secretário do Tesouro norte-americano foi
imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi o FMI que colocou como
condição ao empréstimo que socorreu o sistema bancário uruguaio que não
fossem impostos mecanismos de seguros aos bancos e que fossem devolvidos os depósitos,
mesmo se a corrida não fosse detida. Foi o FMI que obrigou o Estado a socorrer
os bancos afetados. Foi o FMI que condicionou os empréstimos a uma nova
privatização das instituições em no máximo seis meses. Foi o FMI que exigiu
a reengenharia do sistema financeiro quando a crise fosse superada. E foi o FMI
que impôs a livre flutuação do dólar e a aprovação sem questionamentos do
ajuste fiscal e das políticas recessivas.
O relato de "fontes confiáveis" sobre as gestões da Davrieux e Alfie
em Washington é patético: no dia 25 de julho, os dois
"negociadores", nem bem tinham chegado, já estavam fazendo as malas
para voltar, esmagados pela dureza e intransigência do FMI. Mas, bem no último
minuto, como nos filmes de Hollywood, receberam uma chamada do Departamento do
Tesouro: o país mais poderoso do mundo fazia uma declaração de amor ao fraco
governante do menor país da região financeiramente mais castigada do mundo:
"Não posso deixar meu amigo Jorge cair." O suspense que antecipa o
happy end revela um cerco ideológico. Não precisa ser muito perspicaz para
compreender que já faz um tempo desde que os "agentes econômicos"
exibem histeria, as empresas de avaliação de risco se tornam volúveis e as
bolsas agem como adolescentes chatas – o FMI e o Departamento de Tesouro fazem
o jogo do mocinho e o bandido, enquanto os povos latino-americanos se afundam
cada vez mais na pobreza e no desespero.
Se as reservas do Banco Central se esgotaram foi porque os mocinhos e os
bandidos impuseram a condição de que o Estado deveria assegurar os depósitos
e agüentar o temporal sozinho. Se foi necessário utilizar fundos estatais para
socorrer o Banco Comercial foi porque assim foi decidido em Washington. Se o
governo resolveu assumir a gestão dos bancos falidos para tornar a privatizá-los
depois foi porque alguém assim o sugeriu nos ouvidos dos lobbystas nativos ao
preço de 30 mil dólares mensais.
Essa política, implantada com escassíssima margem de autonomia, acabou com as
reservas, fez o dólar disparar e inchou os bancos estatais. Como conseqüência
de tudo isso, o país ficou à beira da bancarrota. Foi então que o "amigo
George" entrou em cena, enquanto seu porta-voz afirmava que tudo o que
tinha sido feito estava errado. O governo uruguaio, então, muda de rota, como
corresponde: liquida bancos, assume as dívidas e impulsiona uma reestrutura do
sistema financeiro. Claro: depois que as piranhas engoliram os bons clientes dos
frágeis bancos, descobrimos que a praça financeira não era o que parecia. E
se desde 1985 até aquele momento tínhamos colocado dinheiro para preservar sua
estabilidade, era momento de admitir que gastamos em vão.
Os bancos estrangeiros fizeram sua própria seleção de espécies: agora é a
vez dos bancos oficiais, porque, segundo a lógica dos colonizados mentais
uruguaios, "o FMI não aceita que o Estado controle 90% da atividade bancária
do país". Deverão ser liquidados os bancos sob intervenção e aqueles de
capital misto em que os sócios privados não estejam lucrando. E ainda que não
se saiba bem por que, parece necessário que o Banco da República seja
privatizado. Para que o pacote todo funcionasse, era necessário criar o
suspense adequado.
Porém, o esquema, como o amor, necessita de dois envolvidos. Faz tempo que a
política econômica do governo é ditada diretamente pelo FMI e o Departamento
do Tesouro. O presidente Batlle cumpriu ponto por ponto tudo o que lhe
impuseram, mas não se comoveu diante das cenas de crianças comendo capim.
Aceitou, submisso, impor uma receita que de antemão já estava condenada ao
fracasso e que sabidamente aumentaria a dívida externa a um ponto em que seria
impossível pagar nem mesmo os juros. Mas não teve um gesto de sensibilidade
diante do empobrecimento da população, do desemprego e da fome.
De forma premeditada, com a cumplicidade do Executivo uruguaio e o respaldo de
uma coalizão parlamentar que tem os braços engessados, o país foi jogado num
beco sem saída. A dívida externa e as reservas do país foram consumidas por
uma estratégia de defesa do sistema bancário e descobrimos que o sistema
financeiro "está corrompido até as raízes", como afirmou o
presidente da coligação oposicionista Frente Ampla, Tabaré Vázquez. Até
mesmo no resgate desse sistema corrupto fracassou-se, com a generosa indolência
do governo diante das falcatruas e a incapacidade total para exercer o controle,
mas também com uma determinação inabalável para aumentar tarifas e reajustar
os preços. Agora sabemos que para o "amigo George" é a docilidade da
Presidência da República que vale 800 milhões de dólares.
E agora cabe a pergunta: o que nos resta nessa terra arrasada pelo modelo
neoliberal? Nos restam, além de alguns políticos corruptos que enriqueceram
escandalosamente com a entrega do patrimônio nacional, as empresas estatais. O
"amigo George" vai querer cobrar o empréstimo com as nossas empresas
estatais de telecomunicações, de energia, de petróleo. Se ele estendeu ao
governo essa ponte de 800 milhões é porque tem no bolso a garantia de nossos
ativos. Daqui a pouco vão nos dizer que seremos obrigados a honrar
"nossos" compromissos; serão os mesmos que na última campanha
eleitoral falaram que, caso a esquerda chegasse ao poder, levaria o país à
bancarrota e nos tranqüilizaram em relação às dívidas em dólares porque
asseguraram que o Partido Colorado (hoje no poder) não ia desvalorizar o peso.
Quando formos "honrar" esses compromissos vendendo as jóias da avó,
seremos, explícita ou implicitamente, como Porto Rico, um "Estado livre
associado". É essa, de fato, uma das opções que nos resta neste pequeno
país tampão entre a Argentina e o Brasil que está prestes a deixar de ser uma
nação.
*Samuel Blixen é um premiado
jornalista e escritor uruguaio. Este artigo foi reproduzido do semanário
uruguaio Brecha (www.Brecha.com.uy)
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