Aqui temos na pratica a ação dos magnatas transnacionais sufocando o povo da América Latina

Tornando-se um Estado Livre Associado?

O empréstimo que o presidente George W. Bush estendeu ao governo uruguaio serviu para estancar a sangria provocada pela implementação das políticas impostas pelo Fundo Monetário Internacional. Mas não foram divulgadas as condições que Washington impôs para liberar esse dinheiro
Samuel Blixen*



"De nenhuma maneira posso permitir que caia meu amigo Jorge" (Batlle), disse George W. Bush no momento de autorizar um empréstimo do Departamento de Tesouro norte-americano por 800 milhões de dólares. O presidente dos Estados Unidos certamente detém informação privilegiada, mas nada fazia suspeitar que, no dia 30 de julho, Jorge Batlle estivesse arriscado de perder a sua cadeira presidencial. Bush deveria explicar o alcance de suas alusões. E se Jorge Batlle, o "amigo Jorge", tem um mínimo de dignidade, também deveria esclarecer se efetivamente esteve a ponto de cair. E mais: deveria informar quais foram as condições que lhe impôs seu "amigo George" para outorgar esse empréstimo ao Uruguai, porque com certeza, em letra bem pequenina, o contrato explica o rápido surto de "solidariedade" que sofreu Bush.

O presidente Batlle deveria explicar que coisas prometeram os enviados de seu governo, Ariel Davrieux e Isaac Alfie, nos cinco dias que passaram em Washington, enquanto o dinheiro, em Montevidéu, escorria dos bancos e as reservas do Banco Central esgotavam-se (até que foi decretado o feriado bancário.) Alfie era uma das testemunhas mais qualificadas da crítica situação e sua qualidade de assessor direto do ex-ministro da Economia não o inibiu de retirar uma grande parte do dinheiro próprio que havia colocado em uma instituição privada.

O secretário do Tesouro dos Estados Unidos não teve pudor em criticar "essas políticas que permitem que o dinheiro que outorgam os organismos multilaterais escapem dos bancos", mas o presidente Batlle, diferentemente de seus colegas argentino e brasileiro, preferiu ignorar a alusão (que se ajustava perfeitamente à situação uruguaia), evitando o desconforto de ter que pedir retificações e exigir desculpas, como fez Fernando Henrique Cardoso. Contudo, essa política que critica o secretário do Tesouro norte-americano foi imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi o FMI que colocou como condição ao empréstimo que socorreu o sistema bancário uruguaio que não fossem impostos mecanismos de seguros aos bancos e que fossem devolvidos os depósitos, mesmo se a corrida não fosse detida. Foi o FMI que obrigou o Estado a socorrer os bancos afetados. Foi o FMI que condicionou os empréstimos a uma nova privatização das instituições em no máximo seis meses. Foi o FMI que exigiu a reengenharia do sistema financeiro quando a crise fosse superada. E foi o FMI que impôs a livre flutuação do dólar e a aprovação sem questionamentos do ajuste fiscal e das políticas recessivas.

O relato de "fontes confiáveis" sobre as gestões da Davrieux e Alfie em Washington é patético: no dia 25 de julho, os dois "negociadores", nem bem tinham chegado, já estavam fazendo as malas para voltar, esmagados pela dureza e intransigência do FMI. Mas, bem no último minuto, como nos filmes de Hollywood, receberam uma chamada do Departamento do Tesouro: o país mais poderoso do mundo fazia uma declaração de amor ao fraco governante do menor país da região financeiramente mais castigada do mundo: "Não posso deixar meu amigo Jorge cair." O suspense que antecipa o happy end revela um cerco ideológico. Não precisa ser muito perspicaz para compreender que já faz um tempo desde que os "agentes econômicos" exibem histeria, as empresas de avaliação de risco se tornam volúveis e as bolsas agem como adolescentes chatas – o FMI e o Departamento de Tesouro fazem o jogo do mocinho e o bandido, enquanto os povos latino-americanos se afundam cada vez mais na pobreza e no desespero.

Se as reservas do Banco Central se esgotaram foi porque os mocinhos e os bandidos impuseram a condição de que o Estado deveria assegurar os depósitos e agüentar o temporal sozinho. Se foi necessário utilizar fundos estatais para socorrer o Banco Comercial foi porque assim foi decidido em Washington. Se o governo resolveu assumir a gestão dos bancos falidos para tornar a privatizá-los depois foi porque alguém assim o sugeriu nos ouvidos dos lobbystas nativos ao preço de 30 mil dólares mensais.

Essa política, implantada com escassíssima margem de autonomia, acabou com as reservas, fez o dólar disparar e inchou os bancos estatais. Como conseqüência de tudo isso, o país ficou à beira da bancarrota. Foi então que o "amigo George" entrou em cena, enquanto seu porta-voz afirmava que tudo o que tinha sido feito estava errado. O governo uruguaio, então, muda de rota, como corresponde: liquida bancos, assume as dívidas e impulsiona uma reestrutura do sistema financeiro. Claro: depois que as piranhas engoliram os bons clientes dos frágeis bancos, descobrimos que a praça financeira não era o que parecia. E se desde 1985 até aquele momento tínhamos colocado dinheiro para preservar sua estabilidade, era momento de admitir que gastamos em vão.

Os bancos estrangeiros fizeram sua própria seleção de espécies: agora é a vez dos bancos oficiais, porque, segundo a lógica dos colonizados mentais uruguaios, "o FMI não aceita que o Estado controle 90% da atividade bancária do país". Deverão ser liquidados os bancos sob intervenção e aqueles de capital misto em que os sócios privados não estejam lucrando. E ainda que não se saiba bem por que, parece necessário que o Banco da República seja privatizado. Para que o pacote todo funcionasse, era necessário criar o suspense adequado.

Porém, o esquema, como o amor, necessita de dois envolvidos. Faz tempo que a política econômica do governo é ditada diretamente pelo FMI e o Departamento do Tesouro. O presidente Batlle cumpriu ponto por ponto tudo o que lhe impuseram, mas não se comoveu diante das cenas de crianças comendo capim. Aceitou, submisso, impor uma receita que de antemão já estava condenada ao fracasso e que sabidamente aumentaria a dívida externa a um ponto em que seria impossível pagar nem mesmo os juros. Mas não teve um gesto de sensibilidade diante do empobrecimento da população, do desemprego e da fome.

De forma premeditada, com a cumplicidade do Executivo uruguaio e o respaldo de uma coalizão parlamentar que tem os braços engessados, o país foi jogado num beco sem saída. A dívida externa e as reservas do país foram consumidas por uma estratégia de defesa do sistema bancário e descobrimos que o sistema financeiro "está corrompido até as raízes", como afirmou o presidente da coligação oposicionista Frente Ampla, Tabaré Vázquez. Até mesmo no resgate desse sistema corrupto fracassou-se, com a generosa indolência do governo diante das falcatruas e a incapacidade total para exercer o controle, mas também com uma determinação inabalável para aumentar tarifas e reajustar os preços. Agora sabemos que para o "amigo George" é a docilidade da Presidência da República que vale 800 milhões de dólares.

E agora cabe a pergunta: o que nos resta nessa terra arrasada pelo modelo neoliberal? Nos restam, além de alguns políticos corruptos que enriqueceram escandalosamente com a entrega do patrimônio nacional, as empresas estatais. O "amigo George" vai querer cobrar o empréstimo com as nossas empresas estatais de telecomunicações, de energia, de petróleo. Se ele estendeu ao governo essa ponte de 800 milhões é porque tem no bolso a garantia de nossos ativos. Daqui a pouco vão nos dizer que seremos obrigados a honrar "nossos" compromissos; serão os mesmos que na última campanha eleitoral falaram que, caso a esquerda chegasse ao poder, levaria o país à bancarrota e nos tranqüilizaram em relação às dívidas em dólares porque asseguraram que o Partido Colorado (hoje no poder) não ia desvalorizar o peso.

Quando formos "honrar" esses compromissos vendendo as jóias da avó, seremos, explícita ou implicitamente, como Porto Rico, um "Estado livre associado". É essa, de fato, uma das opções que nos resta neste pequeno país tampão entre a Argentina e o Brasil que está prestes a deixar de ser uma nação.


*Samuel Blixen é um premiado jornalista e escritor uruguaio. Este artigo foi reproduzido do semanário uruguaio Brecha (www.Brecha.com.uy)

                                
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