Quem já esteve na Venezuela, sabe muito bem: liberdade de
opinião é tudo o que há. Nas rádios e emissoras de televisão
comerciais, o presidente Hugo Chávez é xingado, humilhado,
destratado e desmoralizado. As palavras usadas pelos jornalistas são
de uma violência sem par. E ainda assim, ali estão, eles e elas,
a disseminar suas diatribes, sem que ninguém os impeça.
Não há censura de espécie alguma. Os grandes jornais fazem
oposição ao governo, ou melhor, a Chávez, usando argumentos que
muito mais ofendem a pessoa do presidente do que o governo em si.
É um negócio inimaginável em qualquer outro país do mundo. Se
isso acontecesse nos Estados Unidos, por exemplo, duvido que os
jornalistas não fossem presos ou banidos para sempre. Pois na
Venezuela eles estão livres para falar.
Agora, o governo decidiu uma coisa que também acontece no
chamado "mundo livre", todos os dias. Não vai mais
renovar a concessão de uma rede de televisão do país, a Radio
Caracas Televisión, alegando que a mesma não cumpre a lei. E o
que diz a lei? Que as redes de televisão, assim como as de rádio,
são um serviço público e, como tal, devem servir à população
com informações de interesse de todos, e não só de alguns. É
uma lei muito parecida com as leis dos demais países do mundo,
inclusive do Brasil. Pois a RCTV é uma rede de televisão que
existe há mais de 50 anos, sempre na linha da desinformação,
tal e qual qualquer outra emissora de TV alinhada aos interesses
do grande capital. A RCTV, assim como a Venevisión, é uma rede
que muito mais funciona como uma corrente de transmissão da
ideologia do american way of life do que qualquer outra
coisa. Uma máquina de propaganda, como muito bem já analisou o
teórico Noam Chomsky. Aqui, no Brasil, poderíamos colocar como
análoga a Rede Globo, por exemplo.
Mas, os motivos que levam o presidente Hugo Chávez a não
renovar a concessão vão muito além do que uma possível represália,
como dizem os parceiros da mídia-irmã, como o Jornal Nacional,
da Globo, ou a CNN, braço armado da informação estadunidense.
Num extenso documento chamado "Libro Blanco sobre RCTV",
o Ministério do Poder Popular para a Comunicação e Informação
da Venezuela explica em detalhes os porquês da não-renovação
da concessão. Além de mostrar como se conforma o sistema
comunicacional no país – monopólico, antidemocrático e
concentrador –, o documento esmiúça todas as ilegalidades que
a RCTV vem cometendo há muito tempo.
Prazo de 20 anos
Na Venezuela, 78% das estações de televisão estão em mãos
privadas, contra 22% do setor público. Na banda de UHF, o número
sobe para 82% no setor privado, 11% no comunitário e 7% no público.
Seis grandes grupos tomam conta de quase tudo o que o venezuelano
vê e ouve – e isso mesmo depois da promulgação da nova lei
que regula os meios de comunicação, buscando mais participação
comunitária. Os mais poderosos são os da RCTV e o da Venevisión.
Juntos, controlam 85% das verbas publicitárias e têm 66% do
poder de transmissão.
O grupo que controla a RCTV é o das empresas 1BC, nascido em
1920 e incrementado em 1930 com verbas e tecnologia da RCA. A TV
existe desde o início dos anos 50 e tem, hoje, entre seus
acionistas, uma empresa com sede em Miami, EUA, a Coral Pictures.
Não é sem razão que, segundo estudos do Instituto Nacional del
Menor, 67% dos programas transmitidos são de produção
estrangeira e metade da programação – cerca de 52% – é de
anúncios publicitários. Da programação local, muito pouco
representa a vida real do país. Os programas de auditório, as
telenovelas e outras produções representam, no mais das vezes, a
Venezuela branca e rica. A massa de trabalhadores, os indígenas,
os negros, geralmente só aparecem em programas policiais.
Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.
A idéia de concessões públicas começou a ganhar corpo na
Venezuela no final de 1875, quando o governo se viu diante da
necessidade de controlar as riquezas naturais, mais
particularmente o petróleo. Depois, essas concessões foram se
espraiando para o campo da mineração e das comunicações.
Quando nasce a primeira rádio, em 1923, é o estado quem outorga
a permissão. Desde então, o governo vem ditando leis para
regular o setor. A última delas, antes da lei Resorte, promulgada
no governo Chávez, datava de 1941 e dizia que uma concessão não
podia durar mais que um ano, sendo renovada apenas se o
interessado cumprisse com a legislação. Essa lei só veio a ser
atualizada em 1986, através de um decreto presidencial que
esticou para 20 anos o tempo da concessão. Passado esse tempo, o
Estado pode então revisar o contrato e decidir se a emissora
continua com a permissão.
Notícias falsas e censura
Com a Lei Orgânica de Telecomunicações – aprovada em 2000,
já no governo Chávez – nasce um novo regime de concessões.
Mas essa nova lei garantiu que as autorizações estabelecidas
pelo decreto de 1986 e suas respectivas regras fossem mantidas,
caso os prazos fossem respeitados. Isso significa que todas as
emissoras que tiveram concessão naqueles dias puderam continuar
operando, contando, a partir dali, o prazo de 20 anos. Agora, em
2007, esse prazo está esgotado e daí a revisão de cada uma
delas, já dentro dos critérios da nova lei. Até aí, nada de
ilegal ou de falta de liberdade de expressão. Apenas a correta
adequação a uma nova situação, fruto de uma mudança
significativa no conteúdo do que seja um serviço público, capaz
de "permitir o acesso universal da informação".
Na nova lógica da lei das comunicações venezuelanas, aquele
que detém o controle da empresa não é o dono da mensagem. Ele
tem por obrigação garantir a pluralidade das vozes, a
democratização das idéias e a participação popular. Portanto,
na avaliação do governo da Venezuela, a RCTV, terminado o seu
prazo de concessão, não atende aos requisitos básicos para
continuar gerindo um bem público. E por quê? Porque desde sempre
a emissora manteve a política de informar apenas um lado da questão:
o que interessa ao grande capital.
Segundo o relatório governamental – disponível na internet
–, a RCTV, durante o golpe que tentou tirar Hugo Chávez do
poder, difundiu notícias falsas, impediu a fala de pessoas do
governo, fomentou a violência, negou-se a divulgar opiniões que
eram favoráveis ao governo e não mostrou qualquer ato de
mobilização dos partidários de Chávez.
Controle por corte de verbas
Também no episódio da paralisação dos petroleiros,
organizada pela Fédecamara (instituição empresarial) e a
Confederación de Trabajadores de Venezuela, a RCTV usou atores
profissionais e fabricou imagens visando a falsear a realidade e
incitar o terror. Naqueles dias, a emissora foi alvo de investigações
por parte do governo e todas essas questões foram comprovadas. Não
bastasse isso, também foi detectada a evasão de tributos por
parte da rede, débitos com funcionários e o uso de imagens de
crianças para disseminar o ódio ao governo de Chávez. Todo o
dossiê com essas informações está
disponível na rede mundial de computadores [arquivo PDF; 8,69
MB].
O fato é que todos esses argumentos não estão sendo
divulgados nas reportagens que são feitas sobre a não-renovação
da concessão. Tudo o que se diz é que o governo Chávez está
censurando, reprimindo e impedindo a livre expressão. Os fatos
acima citados mostram que a coisa não é bem assim. Há que
observar todos os pesos da balança.
O pensador estadunidense Noam Chomsky há muito tempo prega que
as pessoas do chamado "mundo livre" deveriam ter à
disposição um curso de autodefesa intelectual. E ele não diz
isso à toa. É por ser um estudioso sistemático do modelo de
comunicação estadunidense – o maior criador de ilusões que já
se viu e que, não por acaso, estende seus tentáculos por toda a
América Latina. Segundo Chomsky, quando o governo dos Estados
Unidos fala em democratização da comunicação, esse discurso é
totalmente desprovido de significado porque lá o cidadão comum não
tem qualquer possibilidade de controle sobre o que é divulgado.
Os únicos interesses que importam são os do governo e os das
grandes corporações. Controlam tudo. Quando, por algum motivo,
as redes de TV ou jornais, principiam a falar de algum tema que
seja contra as políticas governamentais, esses meios são
"censurados" pelo imediato corte de verbas. E, ao que
parece, não há ninguém na CNN ou na Globo gritando contra isso.
O poder de los de abajo
Nos Estados Unidos, denuncia Chomsky, os interesses das
maiorias sempre foram considerados uma "ameaça à
democracia" e quem os divulga fica marcado para sempre. Na
"terra da liberdade" só têm curso livre as informações
que dizem respeito aos interesses nacionais, e aí leia-se: dos
bancos, das grandes empresas, do governo. Nada a ver com o povo. A
desinformação é o prato do dia, servido sem que nenhum
organismo de imprensa se levante em repúdio. Mentiras são
divulgadas à exaustão, como a das armas químicas no Iraque, e
ninguém pede provas. Pelo contrário. A notícia é disseminada
por todos os países e as redes de imprensa a reproduzem como se
fosse a verdade absoluta.
"Para os EUA, quando as grandes empresas perdem o controle
da comunicação, então aí está uma violação da
democracia", diz o teórico estadunidense. E conta ainda
sobre uma rede de TV daquele país que, por ter divulgado uma
reportagem sobre a compra de terras por multinacionais nos países
do terceiro mundo, teve toda a verba publicitária cortada.
Motivo: a notícia era antiestadunidense, o que mostra muito bem
que as multinacionais têm pátria, sim. Mas, estas informações
não chegam ao grande público e ninguém parece enquadrá-las
como antidemocráticas ou como uma barreira à liberdade de
expressão.
O certo é que aquilo que ameaça ter um cheiro de povo, de uma
participação em que o protagonista é o povão, acaba
tornando-se altamente incomodativo. As grandes redes na Venezuela,
acostumadas a colonizar as mentes da população com um mundo
alienígena, começam a perceber que os ventos sopram de outra
direção. Enquanto os apoiadores da RCTV aparecem nas telas da
CNN clamando pelo direito de verem suas novelas e programas de
entretenimento, os que ajudaram a escrever a nova lei de comunicação
querem ver brotar uma nova televisão. Que seja capaz de dar conta
da pluralidade das gentes venezuelanas, que abrigue produções
nacionais, comunitárias, que informe com o maior número de lados
da verdade, que forme, que traga os aspectos culturais do seu
povo, que assegure a participação popular.
De qualquer modo, essa é só mais uma batalha da luta de
classe que se explicita no processo bolivariano. O poder de los
de abajo contra as grandes corporações. Um capítulo
paradigmático, visto que serve de exemplo para as demais
emissoras com concessão a vencer. Na Venezuela, a iniciativa
privada pode expressar-se e viver em paz, desde que cumprindo com
o que diz a lei soberana, fruto da vontade do povo, pois como se
sabe, ali qualquer lei pode ser alterada pelo poder popular.
Assim, o que se vê nas telas das televisões dos países amigos
dos EUA nada mais é do que a velha jogada ideológica de tirar
por diabo toda e qualquer pessoa que não diga amém ao capital.
Mas, quem pensa por si mesmo, pode chegar a outras conclusões...