Publicado em www.planetaportoalegre.net: 18/02/2005
Lavagem de lucros
Lucy Komisar, da Tax Justice Network, denuncia as transações fictícias
que as corporações inventaram para sugar riquezas mundiais e escondê-las
do fisco
Rita Casaro
Destino do dinheiro do tráfico – de drogas, armas ou pessoas –,
corrupção e crimes corporativos, os paraísos fiscais também são refúgio
seguro da sonegação em grande escala. Por esse mecanismo, segundo
relatório da Oxfam, os países pobres perdem anualmente US$ 50 bilhões
em receita tributária. Uma técnica utilizada pelas multinacionais é o
“transfer pricing”, pelo qual as companhias fazem transações fictícias
com suas subsidiárias sediadas em locais como Ilhas Virgens ou Cayman
com o objetivo de esconder os ganhos nos países em que realmente
operam.
Essa é a chamada “lavagem de lucros”, conforme denuncia a
jornalista estadunidense Lucy Komisar, membro da Tax Justice Network,
organização que tem trabalhado para chamar a atenção da sociedade
para esse tipo de trapaça. A tramóia é feita por grandes corporações
ao redor do mundo, usando serviços de instituições financeiras como o
Citibank e acobertada por quem tem muito poder. “O sistema é usado
pelos indivíduos e corporações ricas nos Estados Unidos para lavar
dinheiro ou burlar o fisco. As pessoas que governam os EUA o utilizam
elas próprias”, aponta a jornalista. Em entrevista a Planeta Porto
Alegre, ela falou sobre as artimanhas usadas para saquear os cofres públicos,
suas conseqüências e as propostas para combatê-las.
Em seus artigos e conferências, a senhora tem introduzido um novo
conceito à discussão sobre o sistema financeiro: a lavagem de lucros.
Como funciona isso?
Uma maneira muito comum é pelo transfer pricing (transferência de
produtos e serviços entre subsidiárias de um mesmo grupo), usado
largamente. Sabe-se que hoje metade das transações internacionais é
feita entre filiais de uma mesma companhia e não entre empresas
diferentes. Por exemplo, um par de sapatos feito no Brasil custa,
digamos, R$ 20. No mercado mundial, ele é vendido por R$ 100. Dessa
forma, naturalmente, o fabricante deveria pagar impostos sobre o lucro
de R$ 80. Para burlar o fisco, ele cria uma firma de fachada nas Ilhas
Virgens ou Cayman, ou em qualquer lugar onde exista o sigilo que não
permita a identificação. Então, essa companhia XY comprará os
sapatos por R$ 50 para depois exportá-los por R$ 100.
Resultado: o fabricante paga impostos apenas sobre os R$ 30; os outros
R$ 50 vão para uma conta num paraíso fiscal. E não apenas o fisco está
sendo lesado aqui. No caso de uma sociedade de capital aberto, os
acionistas também não sabem qual foi o lucro real e estão sendo
enganados porque só recebem dividendos sobre os R$ 30. E isso está
acontecendo em todo o mundo.
Essa tramóia depende sempre do sigilo garantido pelos paraísos
fiscais?
Há casos em que nem se preocupam em esconder a quem pertence a
companhia. Alegam que a empresa está fazendo pesquisa ou relações públicas
e, portanto, recebe um percentual dos lucros. Às vezes, de tão
ultrajante, é difícil acreditar nos artifícios dos quais lançam mão.
Por exemplo, uma companhia vende sua própria logomarca para outra no
paraíso fiscal por um pequeno valor. Depois, paga uma fortuna pelo uso
desse logo. Esse dinheiro é remetido a paraísos sem pagar impostos,
porque sai como despesa.
Em qualquer caso, o resultado é sonegação em larga escala...
Nos dois casos, há lavagem de lucros e a sociedade sofre porque não se
beneficia dos impostos devidos. Nos EUA, em 1950, as corporações
pagavam 28% de impostos federais, hoje essa participação caiu para 10%
ou 11%. Quem paga o resto? O povo. Os governos estão taxando o consumo,
quando deveriam taxar a renda. E, pior, os serviços públicos estão
decaindo porque o governo alega não ter recursos. Também são
prejudicadas as pequenas empresas, que não fazem comércio
internacional. Elas têm que pagar seus tributos e competem com aquelas
que usam a lavagem de lucros. É impossível concorrer! E quando eu digo
que não pagam, quero dizer exatamente isso. Há um estudo que mostra
que empresas como GE e Chevron pagaram, de 1996 a 2000, zero de
impostos.
Como elas conseguiram esse feito?
As companhias declaram o que querem em termos de receita e despesa. Então,
há absurdos como toalhas importadas do Paquistão por US$ 154 a
unidade. Ou ainda exportação de pneus de caminhão para o Reino Unido
por US$ 11,74 ou edifícios pré-fabricados para Trinidad por US$ 1,20.
São mentiras e a perda para o país é enorme. Todas essas coisas são
feitas por intermédio do transfer pricing. Certamente, isso é
desonesto, mas não é exatamente ilegal. Deveriam haver mecanismos para
detectar ao menos desvios dessa magnitude e coibi-los.
Esses dados referem-se aos Estados Unidos, mas a prática é
generalizada, não?
Sem dúvida. Um relatório da Oxfam estima que, anualmente, os países
pobres sofrem uma evasão fiscal de US$ 50 bilhões por meio dos paraísos
fiscais. A quantia é equivalente ao que essas nações recebem em ajuda
bilateral, ajuda essa que, em grande parte, tem que ser paga de volta.
Companhias entram, tiram petróleo, diamante ou seja lá o que for e
usam paraísos fiscais para lavar seu lucro e não pagar as taxas no
lugar de onde estão tirando seus lucros.
O que você sugere para combater essa prática?
A solução é ter taxação única, de maneira que a renda seja
distribuída de forma equivalente ao trabalho real que é feito. Não se
pode ter uma empresa que está oficialmente sediada em Cayman, mas não
há ninguém lá. É preciso também abolir o sigilo bancário, para que
as pessoas não possam usar esses artifícios para lavar o lucro. Há
US$ 11 trilhões em paraísos fiscais, o que corresponde a um terço do
PIB mundial. Os números são assustadores. Os EUA estimam que, apenas
pelo transfer pricing, perdem cerca de US$ 50 bilhões por ano.
Quem opera a circulação de tanto dinheiro?
Essas contas estrangeiras não estão em bancos pequenos dos quais ninguém
nunca ouviu falar. São filiais do Citibank ou Bilbao Viscaya, que fazem
muito dinheiro quando abrem essas contas secretas devido às grandes
comissões que elas pagam. Todas essas instituições têm departamento
de private banking, que é para onde você vai se tiver pelo menos US$ 1
milhão. São contas para gente muito rica e servem para esconder e
lavar dinheiro. Acaba sendo um serviço internacional para crimes de
todo tipo, lobby ilegal, tráfico de armas, drogas, crianças e mulheres
e terrorismo
E por que o governo dos Estados Unidos, tão dedicado à repressão às
drogas e ao terror, não investiga, por exemplo, o Citibank?
O problema é que o mesmo sistema é usado pelos indivíduos e corporações
ricas nos Estados Unidos para lavar dinheiro ou burlar o fisco. As
pessoas que governam os EUA o utilizam elas próprias. Para ir atrás
dos bandidos, terão que ir atrás de si mesmas. Quando o presidente
Bush estava na diretoria da Harken Energy, no Texas, essa fundou uma
rede estrangeira para sonegar impostos. Quando Dick Cheney
(vice-presidente) estava à frente da Halliburton, a empresa saltou de
nove subsidiárias para pelo menos 44. Assim, esse pessoal vai manter as
coisas como estão em seu próprio interesse.
Não se depender da Tax Justice Network...
Estamos trabalhando para conscientizar as pessoas sobre isso e fazendo
esforços para que a Tax Justice Network esteja presente em diversos países,
atuando nessa fiscalização. É preciso que as organizações que
militam para que as empresas sejam social e ambientalmente responsáveis
também exijam que elas paguem tributos corretamente. Muitos grupos
empresariais podem doar dinheiro para cultura ou outra boa causa
qualquer, o que é uma ótima oportunidade de fazer marketing. Porém, o
que acontece freqüentemente? Eles gastam R$ 100 mil nesse projeto e
sonegam R$ 1 milhão em impostos. Com esse recurso, que é da sociedade,
o Estado poderia fazer dez projetos diferentes e gastar o dinheiro de
acordo com a vontade da população, não de uma determinada corporação. |