João Goulart foi morto a pedido do Brasil, diz ex-agente uruguaio

Jango morreu envenenado, afirma Mario Neira Barreiro

Sérgio Fleury teria dado a ordem para o assassinato

Presidente deposto teria dito aos agentes que sabia da espionagem: "Sei que estão me vigiando, mas não sou inimigo de vocês"

SIMONE IGLESIAS
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

Preso desde 2003 na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (RS), o ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Neira Barreiro, 54, disse em entrevista exclusiva à Folha que espionou durante quatro anos o presidente João Goulart (1918-1976), o Jango, e que ele foi morto por envenenamento a pedido do governo brasileiro.
Jango morreu em 6 de dezembro de 1976, na Argentina, oficialmente de ataque cardíaco. Ele governou o Brasil de 1961 até ser deposto por um golpe militar em 31 de março de 1964, quando foi para o exílio. À Folha Barreiro deu detalhes da operação da qual participou e que teria causado a morte de Jango. Segundo o ex-agente, Jango não morreu de ataque cardíaco, mas envenenado, após ter sido vigiado 24 horas por dia de 1973 a 1976.
Barreiro disse que Sérgio Paranhos Fleury (que morreu em 1979), à época delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, era a ligação entre a inteligência uruguaia e o governo brasileiro. A ordem para que Jango fosse morto partiu de Fleury, em reunião no Uruguai com dois comandantes que chefiavam a "equipe Centauro" -grupo integrado por Barreiro que monitorava Jango. O Uruguai mantinha uma outra equipe de vigilância, a Antares, para monitorar Leonel Brizola.
As escutas, feitas e transcritas por Barreiro, teriam servido de motivo para matar Jango. Mas, segundo o ex-agente (que tinha o codinome de tenente Tamúz), o conteúdo das conversas não era grave: tratavam da vontade de Jango de voltar ao Brasil, de críticas ao regime militar e de assuntos domésticos. Barreiro afirmou que interpretações "erradas e exageradas" do governo brasileiro levaram ao assassinato.
Segundo o uruguaio, a autorização para que isso ocorresse partiu do então presidente Ernesto Geisel (1908-1996) e foi transmitida a Fleury, que acertou com o serviço de inteligência do Uruguai os detalhes da operação, chamada Escorpião -que teria sido acompanhada e financiada pela CIA (agência de inteligência americana).
O plano consistia em pôr comprimidos envenenados nos frascos dos medicamentos que Jango tomava para o coração: o efeito seria semelhante a um ataque cardíaco. As cápsulas envenenadas eram misturadas aos remédios no Hotel Liberty, em Buenos Aires, onde morava a família de Jango, na fazenda de Maldonado e no porta-luvas de seu carro. Barreiro não exibiu provas e disse que o caso era discutido pessoalmente.
 

FOLHA - Qual era o interesse do Uruguai em vigiar Jango?
MARIO NEIRA BARREIRO
- Após o golpe no Brasil, o serviço de inteligência do governo do Uruguai se viu obrigado a cooperar porque era totalmente dependente do Brasil. Goulart, para nós, era uma pessoa que não tinha nenhuma importância.

FOLHA - Quando passou a vigiá-lo?
BARREIRO
- Eu o monitorei de meados de 1973 até sua morte, em 6 de dezembro de 1976. Monitorei tudo o que falava através do telefone, de escuta ambiental e em lugares públicos.

FOLHA - O sr. colocou microfones na casa? Como ouvia as conversas?
BARREIRO
- Estive na fazenda de Maldonado para colocar uma estação repetidora que captava sinais dos microfones de dentro da casa e retransmitia para nós. Esta estação repetidora foi colocada numa caixa de força que havia na fazenda. Aproveitamos essa fonte de energia para alimentar os aparelhos eletrônicos e para ampliar as escutas. Isso possibilitava que ouvíssemos as conversas a 10, 12 km de distância. Ficávamos no hipódromo de Maldonado ouvindo o que Jango falava.

FOLHA - Alguma vez falou com ele?
BARREIRO
- Sim. Eu e um colega estávamos vigiando a fazenda, fingindo que um pneu da camionete estava furado. Ele nos viu e veio até nós caminhando e fumando. Perguntou se precisávamos de ajuda. Estava frio e ele nos convidou para tomar um café. Eu pensei: "Ou ele é muito burro ou muito bom". Ele me convidou para entrar na fazenda. Meu colega não quis ir.
Depois que fiz um lanche e tomei o café, eu disse: "Desculpa, senhor, qual é o seu nome?". Ele me olhou e disse: "Mas como, rapaz, tu não sabes quem sou eu? Tu estás me vigiando. Acha que sou bobo? Fui presidente do Brasil porque sou burro? Estou te convidando para minha fazenda porque não tenho nada a esconder. Sei que estão me vigiando, mas não sou inimigo de vocês". Eu disse que ele estava enganado, me fiz de bobo, mas ele era inteligente.
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Oficiais não têm condição de responder

DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

Durante a semana passada, a Folha tentou, sem sucesso, falar com pessoas que pudessem esclarecer as afirmações feitas pelo ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Barreiro.
O Exército brasileiro informou que não há hoje ninguém na ativa com condição de responder ou até rejeitar acusações. O mesmo foi dito pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, questionada se houve participação da CIA na suposta operação para matar o presidente João Goulart, em 1976. Segundo a assessoria da embaixada, todos os funcionários que trabalharam por lá nos anos 70, no Brasil, já deixaram o país.
À Embaixada do Uruguai foram enviadas por e-mail perguntas sobre a eventual participação do governo daquele país. A assessoria disse que, se houver interesse do governo em responder, vai entrar em contato após a publicação da reportagem.
A Folha tentou entrevistar o delegado Paulo Sérgio Fleury, filho de Sérgio Paranhos Fleury, apontado por Barreiro como um dos envolvidos na suposta trama para a morte de Jango. A reportagem telefonou para os seus dois números de celular e deixou recado, mas ele não ligou de volta.
Humberto Esmeraldo Barreto, que foi assessor do presidente Ernesto Geisel (1908-1996) e seu amigo, foi procurado. A reportagem ligou durante toda a sexta para a sua casa, mas ele não atendeu.
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Fleury deu a ordem final, diz ex-agente

Barreiro afirma que comprimidos foram colocados na fazenda, no carro e no hotel

Jango "era desorganizado. Abria um frasco, tomava alguns, na fazenda abria outro... E colocávamos um remédio em cada frasco"

DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

Neste trecho da entrevista, Mario Neira Barreiro conta como João Goulart teria sido envenenado. (SIMONE IGLESIAS)  

FOLHA - Como foi decidido que Jango deveria ser morto?
BARREIRO
- O que levou à morte foram interpretações erradas, exageradas do que ele falava. Fleury foi quem deu a palavra final. Em uma reunião no Uruguai, disse que Jango era um conspirador e que falaria com Geisel para dar um ponto final no assunto. Depois, em outra reunião no Uruguai, disse -não para mim, mas para um major e um general- que tinha conversado com Geisel dizendo que Jango estava complicando e que ele sabia o que deveria ser feito. E ele [Geisel] disse: "Faça e não me diga mais nada sobre Goulart". A morte não foi decidida pelo governo uruguaio, mas pelo governo do Brasil, influenciado pela CIA.

FOLHA - Qual foi o papel da CIA?
BARREIRO
- A CIA pagou fortunas para saber o que Jango falava e foi responsável por muita coisa, mas não quero falar sobre isso porque tenho medo.

FOLHA - Como Jango foi morto?
BARREIRO
- Foi morto como resultado de uma troca proposital de medicamentos. Ele tomava Isordil, Adelfan e Nifodin, que eram para o coração. Havia um médico-legista que se chamava Carlos Milles. Ele era médico e capitão do serviço secreto. O primeiro ingrediente químico veio da CIA e foi testado com cachorros e doentes terminais. O doutor deu os remédios e eles morreram. Ele desidratava os compostos, tinha cloreto de potássio. Não posso dizer a fórmula química, porque não sei. Ele colocava dentro de um comprimido.

FOLHA - Como as cápsulas eram colocadas nos remédios de Jango?
BARREIRO
- Ele era desorganizado. Abria um frasco, tomava alguns, na fazenda abria outro. Tinha sete, oito frascos abertos. E colocávamos [referência ao grupo que monitorava Jango] um remédio em cada frasco. Colocamos os comprimidos em vários lugares: no escritório na fazenda, no porta-luvas do carro e no Hotel Liberty.

FOLHA - O sr. concordava com a operação para matá-lo?
BARREIRO
- Era contrário, mas era um simples serviçal. Passei a simpatizar com ele. Goulart era um homem bom. Mas se tivessem me pedido para eliminar Brizola, eu mataria: ele era um conspirador nato.