Cai a máscara dos ricos

Os países desenvolvidos mostram a face do neoprotecionismo na conferência de Seattle.

    O mais novo filhote econômico a pular na praça se chama neoprotecionismo e usa fantasias variadas, de sindicalista a ecologista. Foi essa gente que armou barraca e fez baderna na cidade americana de Seattle, que sediou, na semana passada, a conferência da Organização Mundial do Comércio, OMC. Tudo bem. Não houve feridos graves, apenas constrangimentos policiais passageiros. A decepção verdadeira foi a própria conferência. Os países pobres ou em desenvolvimento esperavam mais coerência dos ricos.

    Esperavam principalmente que se abrissem brechas no muro que protege os agricultores japoneses, americanos e europeus da concorrência internacional. Nada feito. A lição de Seattle é a de que o liberalismo dos países ricos é uma via de mão única. Vale quando produtos e serviços vêm de lá para cá – mas não quando o fluxo é daqui para lá.

    Na questão da liberdade comercial, o mundo vira o século com a estrada pela metade. Muita coisa foi feita. Tarifas baixaram, países se recuperaram da devastação da guerra importando e exportando e a riqueza mundial multiplicou-se por sete nos últimos 51 anos. Mas num aspecto essencial, que é a abertura de oportunidades para as nações menos desenvolvidas, a coisa ficou para ser resolvida no dia de São Nunca. Aqueles que precisam exportar mais, até porque abriram suas fronteiras, estão importando muito e precisam pagar a conta, terão muitas dificuldades. É o caso concreto do Brasil. A balança comercial brasileira encerrará o ano com um déficit de cerca de 1,5 bilhão de dólares, conta que poderia ser facilmente fechada caso os Estados Unidos comprassem um pouco mais de suco de laranja. Mas os americanos protegem os laranjais da Califórnia. Seria bom se importassem açúcar brasileiro. Mas protegem os plantadores de beterraba. Já há alguns anos os japoneses exportam automóveis com facilidade para o Brasil. Mas não compram seu óleo de soja, pois querem refiná-lo lá.

    Todos os que precisam vender coisas baratas para os sócios ricos – como produtos com algum grau de industrialização – enfrentam esse problema. Ao lado dos brasileiros, olhando para a muralha, estão chineses, indianos, africanos e a maioria dos latino-americanos. "A conferência de Seattle poderia ter sido historicamente importante se derrubasse barreiras. Perdeu-se a oportunidade", diz o empresário Roberto Giannetti da Fonseca, vice-presidente da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior, Funcex. É um pouco mais do que isso. O que surge desse encontro turbulento é um sentimento de traição. Nas décadas de 60 e 70, a palavra de ordem dos países que desejavam desenvolver-se industrialmente era o fechamento econômico. Isolando-se em suas fronteiras, estimulavam a indústria nacional.

    Nos anos 80, a maioria dessas economias se abriu, em grande parte por pressão dos países ricos. Transformaram-se em mercados consumidores, pagaram bem pelo capital emprestado. Agora são os ricos que se recusam a uma abertura maior. Fazem isso com a desculpa muito razoável de que precisam defender o emprego em seu território. É uma lógica que dificilmente se entende no contexto de um jogo liberal. O trabalhador da indústria têxtil pode ser despejado no Brasil. O agricultor europeu, não. O metalúrgico americano tem seu trabalho garantido por grupos fortíssimos que influenciam o governo. Isso é feito por meio de acusações de dumping dirigidas às siderúrgicas estrangeiras. Sejam essas acusações falsas ou verdadeiras, enquanto a investigação perdura ninguém se atreve a comprar aço do país acusado. O preço, muitas vezes, é cobrado em desemprego.

    Liberalíssimos no discurso, os EUA são draconianos quando apanham uma vítima. Apenas para ficar no aço, e no aço brasileiro, está acontecendo o seguinte caso revelador. Quando eram estatais, as siderúrgicas brasileiras tinham seu preço controlado pelo governo, e isso foi considerado subsídio pelos americanos. Um processo de dumping foi aberto e praticamente se barrou o aço brasileiro. O Brasil fez toda a lição liberal nos anos 90. Abriu as fronteiras, sua bolsa de valores, privatizou as estatais, aboliu controles de preço. Não adianta. O governo americano agora quer compensações pelos subsídios do passado, sem considerar que, em 1998, os brasileiros compraram 3,6 bilhões de dólares a mais do que venderam aos EUA. Nenhuma palavra dizem também dos milhões de dólares em subsídios que eles dão para as próprias usinas. Hipocrisia pura.

    São distorções comerciais criadas pelo jogo duplo dos países desenvolvidos estão à mostra. Os pobres e remediados podem exportar alimentos brutos a granel ou matérias-primas sem pagar imposto ou pagando imposto muito baixo. Mas se quiserem jogar algum grau de industrialização no produto exportado, para agregar maior valor a suas exportações, a alíquota sobe imediatamente. Num trabalho feito recentemente, o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Unctad, cita dois exemplos. A Alemanha importa café em grão sem cobrar imposto. Se o produto for café solúvel, surge uma taxa de até 18%. Os alemães, que não plantam café, são hoje um dos maiores exportadores de café solúvel.

    Levadas às últimas conseqüências, medidas como as descritas acima condenam os países pobres a continuar eternamente pobres, já que não existe incentivo econômico para que melhorem os produtos que exportam. Para que absorver tecnologias mais limpas? Como aumentar os salários e melhorar as condições de vida dos trabalhadores, se tudo que se permite que o Terceiro Mundo exporte são produtos toscos, inacabados, matérias-primas, enfim? São tais contradições que derrubaram a máscara dos ricos na semana passada em Seattle. A exibição dos jovens manipulados pelas ONGs que foram às ruas protestar só torna o paradoxo mais agudo. As manifestações demonstram que as questões reais dos países em desenvolvimento não são sequer percebidas pela opinião pública das nações ricas. Se querem fábricas limpas, salários decentes e proteção para os recursos naturais dos países pobres, os ricos só podem fazer uma coisa: incentivar regras de comércio que animem as economias menores para que lhes seja vantajoso vender para Europa, Japão e Estados Unidos.

    Outro caso citado por Ricupero é o do tomate. Os europeus subsidiam pesadamente os produtores, o que faz com que o extrato de tomate saia muito barato. Com isso, mataram indústrias que cresciam em países necessitados, como Mali, Senegal e Gana, na África. Aqui se nota novamente uma lógica peculiar, mais adequada ao passado colonial do que ao século do capitalismo. Nos últimos duelos comerciais têm sido levantadas preocupações com o meio ambiente, o respeito à infância e à dignidade do trabalho. Uma delas, sobre as crianças, foi apresentada pelo presidente Bill Clinton durante a conferência de Seattle. Ao assinar um documento da Organização Internacional do Trabalho condenando o trabalho infantil, Clinton citou três casos de abuso: mão-de-obra infantil fabricando bolas de futebol no Paquistão, fogos de artifício na Guatemala e sapatos no Brasil. Condenações como essa não podem ser contestadas em sua substância, mas causam problemas ao se misturar com políticas comerciais. Fica fácil confundir os bons sentimentos do presidente americano com o interesse dos lobbies econômicos, que contribuem para suas campanhas e não querem ver produtos baratos disputando mercado nos Estados Unidos.

    Uma das maneiras de elevar o padrão de vida de um povo, ou proteger animais e florestas, é justamente aumentar a justiça comercial. Se um país tem oportunidade de vender seus produtos a bom preço, ele enriquece, e pode importar também. Quando esse processo se acelera, a roda da riqueza mundial gira mais rápido e num raio crescente. Os estudos da OMC mostram esse resultado. Entre 1970 e 1989, nos quinze países em que foi constatada uma abertura comercial efetiva, o PIB per capita cresceu, em média, 4,5% ao ano. Bem mais do que aqueles que permaneceram fechados. Nesses, o crescimento ficou abaixo de 1% ao ano. Nos Estados Unidos, hoje, um em cada três novos empregos criados está no setor de exportações. O que prova que os ricos se beneficiam do processo de abertura.

    A OMC surgiu com a finalidade de promover o desenvolvimento do livre comércio e tornar as relações entre os países mais suaves. Seus integrantes são 135 países entre ricos, pobres e em processo de industrialização, que representam 90% do comércio internacional. Há trinta nações na fila para entrar na organização. Ela começou a ser criada depois da II Guerra Mundial, a partir do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (a sigla inglesa é Gatt). Foram necessários quase cinqüenta anos para que esse fórum conseguisse poder suficiente para arbitrar as brigas entre parceiros. Uma demonstração de que nesse campo a evolução é demorada. Outra prova de que o protecionismo não acaba da noite para o dia é o cerco físico que os manifestantes armaram em Seattle na semana passada. É ignorância bastante para ocupar os diplomatas por décadas.
Fonte: Veja (05/12/1999)
                                       VOLTAR